Mel tem tudo para ser feliz: um casamento marcado com Dário, um empresário bem-sucedido e influente, uma vida confortável e o respeito da sociedade. Mas a perfeição tem um preço — e ela sente que está a pagar com a própria liberdade. Quando conhece Alessandro, um artista de rua apaixonado pela vida e pela arte, o mundo de Mel começa a desmoronar. O que era seguro torna-se sufocante. O que era proibido, torna-se irresistível. Entre o luxo e a liberdade, entre o dever e o desejo, entre dois homens tão diferentes quanto os mundos que representam... Mel terá de escolher. Mas e se o coração dela já tiver escolhido por ela?
Ler maisO som dos saltos de Mel ressoava nas calçadas de Maputo enquanto o sol se despedia por trás dos prédios, pintando o céu com tons de laranja e lilás. Cada passo seu ecoava como se marcasse o compasso de uma vida cuidadosamente coreografada. Vestia um elegante vestido azul-marinho, justo no corpo, combinando com a pasta de couro onde guardava os convites do casamento. O cabelo preso num coque baixo e o perfume discreto completavam o visual de mulher decidida. Mas dentro dela, algo estava longe de estar em ordem.
Tinha acabado de sair de mais uma reunião sobre o casamento com Dário. A lista de convidados estava quase fechada, os contratos com os fornecedores assinados, e o local escolhido. Tudo parecia caminhar como esperado, mas Mel não sentia o calor da felicidade. Em vez disso, sentia um vazio crescente, como se estivesse a viver a vida de outra pessoa — alguém que apenas representava o papel da noiva perfeita. Ao dobrar a esquina do Parque dos Continuadores, um murmúrio chamou a sua atenção. Havia uma pequena multidão reunida em volta de algo no chão. Primeiro hesitou, mas o tédio da tarde e a vontade de respirar algo diferente a fizeram atravessar a rua. Aproximou-se com passos lentos. No centro da roda de pessoas, um homem desenhava diretamente na calçada com pedaços de carvão. Os traços que saíam de suas mãos eram intensos, quase vivos, formando o rosto de uma mulher com expressão de angústia e desejo. Era arte crua, sem filtros — e, de alguma forma, Mel sentiu que aquele desenho falava dela. O artista era jovem, mas os olhos revelavam uma alma antiga. As mãos sujas de carvão moviam-se com precisão, e o olhar firme parecia atravessar qualquer um que se aproximasse. O cabelo castanho-escuro caía levemente sobre a testa, e havia algo nos ombros largos e postura confiante que o tornavam impossível de ignorar. Quando levantou o rosto e os olhares se cruzaram, Mel sentiu o tempo parar por um segundo. — Gostas de arte? — perguntou ele, a voz rouca, segura, com um leve sotaque que ela não conseguiu identificar. Tinha o tipo de voz que não se esquece facilmente. Mel hesitou. Estava ali por impulso, mas algo naquele homem a desarmava por completo. — Gosto... especialmente da que me obriga a parar — respondeu, quase sem pensar. Ele sorriu, não com arrogância, mas com uma serenidade provocadora, como se já a conhecesse de algum sonho. — Chamo-me Alessandro. Ele estendeu a mão suja de carvão, sem vergonha, sem filtros. A palma aberta diante dela parecia um convite — não só para um cumprimento, mas para um mundo desconhecido. Mel olhou para a mão dele, depois para a sua. O anel de noivado brilhava discretamente no dedo anelar, lembrando-a de Dário, o homem que a esperava com expectativas e listas, com segurança e promessas. Lembrou-se do vestido branco guardado num armário, das flores escolhidas, dos votos que ainda nem conseguira escrever. Mas naquele instante, tudo isso parecia distante. Frio. Artificial. Ela estendeu a mão, tocando a dele. Foi um gesto simples, mas carregado de electricidade. O toque foi quente, firme, e pareceu durar mais do que devia. — Mel — disse, e o seu nome soou diferente ao sair dos próprios lábios. — É um nome bonito. Combina contigo. Ela sorriu, apesar de si mesma. Alessandro voltou a baixar os olhos para o desenho, mas continuou a falar. — Sabes o que me inspirou hoje? A sensação de estar preso num mundo... enquanto se sonha com outro. Mel sentiu o estômago revirar. Era como se ele tivesse lido a alma dela. — Às vezes, os sonhos assustam mais do que a realidade — disse ela, surpreendendo-se com a própria sinceridade. — Mas são os únicos que valem a pena — respondeu ele, olhando-a de novo. E naquele momento, Mel soube — com uma certeza que não sentira nem no dia do noivado — que a sua vida acabava de mudar.A sala onde o encontro ia decorrer era simples, discreta. Clara tinha arranjado o espaço através de uma amiga numa ONG de apoio à vítima. As janelas estavam tapadas com cortinas grossas, e na porta de entrada havia um segurança de confiança. Tudo tinha sido preparado com cuidado.Mel respirou fundo antes de entrar. O calor no peito era uma mistura de nervosismo e responsabilidade. Aquela seria a primeira vez que reunia presencialmente algumas das mulheres que a tinham procurado desde a denúncia.Ao seu lado, Luna apertava-lhe a mão. Alessandro ficou do lado de fora, a garantir que tudo corria bem, enquanto Clara organizava os últimos detalhes.Dentro da sala, quatro mulheres já estavam sentadas. Os rostos denunciavam histórias diferentes, mas havia um traço comum em todas: olhos marcados por memórias pesadas e, agora, por esperança.Uma delas, Raquel, tinha viajado desde Inhambane para estar ali. Olhava para Mel com uma admiração quase tímida.— Nunca pensei que alguém com a tua corag
A sala estava mergulhada num silêncio tenso. Clara sentou-se à frente de Mel, Luna e Alessandro, o tablet ainda na mão, os olhos inquietos. Na tela, o e-mail anónimo que acabara de receber destacava-se em letras pretas e secas, como um sussurro perigoso vindo das sombras.> “Ela não é a única. Há mais. Muito mais. Alguns nomes intocáveis estão envolvidos. Se continuarem, vão descobrir coisas que não deveriam. Nem todos querem que a verdade apareça. Tenham cuidado.”– Assinado: Um arrependido.Mel sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A coragem que construía com esforço parecia vacilar por um instante.— Estás a pensar que é uma ameaça? — perguntou, num tom baixo.Clara abanou a cabeça.— Não sei. Pode ser. Mas também pode ser uma tentativa de aviso genuíno. A linguagem é ambígua de propósito. Alguém quer manter o anonimato — talvez por medo, talvez por estratégia.Luna passou a mão pelo rosto, frustrada.— Isto só prova que estamos a chegar perto de algo importante. Não podemos r
O sol brilhava alto no céu de Maputo, mas dentro de Mel ainda havia sombras a dançar. Não era medo — pelo menos não o mesmo medo de antes. Era um tipo de receio diferente, mais profundo: o de não estar à altura da coragem que agora inspirava nos outros.Desde a publicação do vídeo, os dias tinham sido um turbilhão. A repercussão fora maior do que Mel imaginava. Mulheres de várias partes da cidade, algumas com nomes conhecidos, outras completamente anónimas, começaram a partilhar as suas histórias. A caixa de entrada das redes sociais estava repleta de mensagens emocionadas, pedidos de ajuda e agradecimentos.Mel lia tudo. Cada testemunho doía, mas também lhe mostrava que não estava sozinha.Ela estava sentada à mesa redonda da pequena sala do apartamento de Luna. Na frente, uma chávena de chá de hibisco fumegava. Ao lado, Clara, a jornalista que se tornara mais do que uma aliada — uma ponte entre as vítimas e a verdade. Alessandro estava recostado no sofá, com um caderno de esboços no
O ar em Maputo parecia mais denso naquela manhã. As nuvens pairavam pesadas, como se o tempo estivesse a suster a respiração, aguardando o que estava por vir. No apartamento de Luna, o ambiente era silencioso, mas não de forma tranquila — era um silêncio tenso, expectante.Clara percorria a sala com passos curtos, organizando os papéis da entrevista. Mel estava sentada no sofá, as mãos entrelaçadas, os olhos fixos num ponto qualquer da parede. Alessandro, encostado à janela, observava a cidade lá fora, como se tentasse absorver alguma coragem do movimento que acontecia além das quatro paredes.— Mel — começou Clara com suavidade —, sei que te pedi muito, mas esta oportunidade pode mudar o rumo desta investigação. Mostrar um rosto, dar voz à dor. Isso... pode ser o empurrão que outras vítimas precisam para aparecer.Mel engoliu em seco. Tinha aceitado o convite da jornalista para uma entrevista exclusiva, mas agora que o momento se aproximava, a ansiedade ameaçava engolir-lhe a razão.
O café onde se encontravam não era luxuoso, mas havia algo nele que os fazia sentir em casa. Talvez fossem as plantas penduradas no teto, ou os quadros com frases de empoderamento nas paredes. Ou talvez fosse simplesmente o alívio de estarem, pela primeira vez em muito tempo, a respirar sem medo.Clara foi a última a chegar. O seu casaco azul estava amarrotado, os olhos marcados por noites mal dormidas, mas o sorriso era firme.— Está feito — disse, pousando o telemóvel sobre a mesa. — O áudio já circula em todas as plataformas. E temos mais duas testemunhas dispostas a falar.Alessandro inclinou-se para a frente.— E estão seguras?— Sim. Uma delas é jornalista como eu, sabe como se proteger. A outra... vai precisar de ajuda. Mas está decidida.Mel assentiu, os olhos fixos no chá ainda intocado.— Nunca pensei ver este dia. Ouvir a voz dele... com aquelas ameaças... É como se o mundo finalmente estivesse a ver o que eu via todos os dias.Luna segurou a mão da amiga, apertando com car
O som das teclas do computador era o único ruído naquela sala espaçosa, agora vazia demais para o ego de Dário. Estava sentado à secretária do seu escritório, os olhos fixos nos e-mails que não paravam de chegar — mas não eram pedidos, nem elogios. Eram desligamentos, notas de rompimento, cancelamentos de contratos. A reportagem da jornalista Clara caíra como uma bomba na reputação cuidadosamente construída ao longo dos anos. E os estilhaços estavam a atingir tudo e todos à volta.No topo da lista: ele próprio.As acusações ainda não eram formais, mas a matéria citava fontes anónimas — algumas internas. Falava de manipulação emocional, abuso psicológico, uso de influência para silenciar adversários, e até subornos no mundo dos negócios. Nada de ilegal confirmado, mas tudo moralmente condenável. E isso bastava para a elite que outrora o reverenciava virar-lhe as costas.O telefone tocou. Uma chamada do pai.— Sim? — atendeu com voz tensa.— Disseste que tinhas tudo sob controlo. Disses
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